Revista Presença Pedagógica (Maio/Junho 1995)

A hora e vez da literatura infantil
Neusa Sorrenti*

Nosso processo educacional, preocupado com o programa a ser cumprido, às vezes se esquece de ver o aluno como um ser capaz de sonhar, de inventar, de criar, ou seja, passar de aluno repetidor para aluno realizador. Não há ambiente mais propício para essa conquista do que a escola, onde o aluno passa grande parte de seu tempo, tem a assistência do professor e, geralmente, conta com uma biblioteca.

Esse último item parece ser a pedra no sapato das instituições escolares, principalmente as estaduais, onde o livro não chega, e os que existem caem aos pedaços. A escola se põe a fazer rifas e promover eventos, cuja renda é revertida para as compras mais urgentes.
Como uma palavra puxa outra, esse "urgente" varia muito. Vai da reforma da rede elétrica, hidráulica, ou dos muros, até o material para uso na cozinha. O livro, quando incluído nessa lista, é por obra e graça de um diretor que, sensível à palavra impressa, reconhece nela o fundamento para inúmeras atividades vitais no mundo em que vivemos.
Quanto à leitura do texto literário, não se sabe a quantas anda: As expressões "não tenho tempo" e "literatura, nem pensar" passeiam pelos corredores da escola, impunemente.
Numa sociedade de consumo, onde o criar cede lugar ao pronto, a criança vai se tornando espectadora da criação de uma minoria. Seja diante da tevê ou de um brinquedo eletrônico, ela se refugia na passividade, porque os boizinhos de chuchu e sabugo, as pernas de pau, as bonecas de pano e os bordados feitos com espinho de laranjeira na folha da taioba já se perderam no tempo. E talvez voltem em alguma novela de época...
A criança e o adolescente não podem ser vistos como meros seres passivos -receptores de teorias. Além de vivenciarem situações de aprendizagem, precisam produzir conhecimentos e, de acordo com as oportunidades que lhes são oferecidas, ler o mundo que os cerca.
Há alunos privilegiados que, mesmo contra a maré, nadam de braçada entre correntezas de idéias brilhantes. Mas, e os outros? E aqueles da turma do "não li, não gostei, tenho raiva de quem leu"?
Falar sobre a questão da leitura dá "pano pra manga". Como ser criativo e produzir conhecimentos, sem conseguir manejar a ferramenta da palavra?

Seja a leitura informativa ou a leitura literária - ambas precisam do estímulo da escola. Limitar-se às apostilas, às anotações ou ao livro didático é pouco. A leitura precisa ser vista com os olhos do prazer, respondendo às indagações e às necessidades de cada um.
No tempo em que se ouvia história ao redor do fogão ou ao ar livre, em noites quentes e de lua clara, as crianças preenchiam seu imaginário com bruxas e fadas. Passar dessa literatura oral à leitura dos contos escritos era fácil, além de mágico.
Longe da nostalgia ou do saudosismo, vale lembrar como são fascinantes as histórias lidas, principalmente os contos de fadas que, ao contrário do que se pensa, não são tão antigos assim. Com a invenção da imprensa por Gutenberg, no século XV, esses contos seculares da tradição oral, passados de geração a geração, ganharam o registro escrito.
Giovanni de Caravaggio publicou, em 1554, uma reunião de contos folclóricos, cujos temas se tornaram universais, como, por exemplo, o Gato de Botas. Giambattista Basile, também no século XVI, recolhe contos que entram para a literatura universal, como a Bela Adormecida no Bosque, Branca de Neve e Gata Borralheira.
Na segunda metade do século XVII, na Alemanha, os irmãos Grimm publicam, em sete edições diferentes, os Contos Infantis e Familiares, buscando dar um novo tratamento às histórias originárias do povo alemão. No século XIX, o dinamarquês Andersen escreve mais de 150 contos de origem popular, como o Patinho Feio e Soldadinho de Chumbo. Por sua importância, o maior prêmio de Literatura Infantil tem seu nome.
Apesar de, em sua maioria, serem baseados em antigo material folclórico oral, esses contos sofreram inúmeras adaptações. Foram reescritos e modificados segundo o espírito da época de seus autores. Se, no conto de Perrault, Chapeuzinho Vermelho e a avó morrem inevitavelmente na boca do lobo, na versão de Grimm, um século depois, aparece a figura do caçador, atenuando a tragédia. Cada trabalho é projetado em contextos sócioculturais e históricos particulares: Perrault escreveu segundo códigos da corte de Luiz XIV, enquanto os irmãos Grimm imprimiram novos valores da burguesia alemã a suas histórias.
Ainda no século XIX, são dignos de nota o grande Carlo Collodi, com seu inesquecível Pinóquio; o futurólogo Júlio Verne; Lewis Carroll, autor de Alice no Pais das Maravilhas, inaugurando o nonsense ou a lucidez do absurdo; Mark Twain e seu querido Tom Sawer; Amicis, autor de Coração; Robert Louis Stevenson com sua Ilha do Tesouro; James Barrie, o criador de Peter Pan; Kipling, ambientando na selva o seu Mowgli, o menino lobo, e Edgar Rice Burroughs, criador do Tarzan. No século XX, o furacão Lobato, rompendo com estereótipos ao publicar, em 1921, A Menina do Narizinho Arrebitado, liberta a linguagem brasileira do modelo lusitano.
Hoje, no limiar de um novo século, valeria refletir sobre a situação da literatura infantil na escola. A começar pelo adjetivo "infantil", que encerra uma idéia de pequenez e inconseqüência para muitas pessoas que acreditam que fazer uma literatura direcionada para a criança seja a coisa mais elementar possível. Basta colocar animais, diminutivos, vocabulário fácil e fechar com um "foram felizes para sempre". Há muito tempo que essa receita não funciona. Quem a utilizar, vai se surpreender com um "bolo solado", intragável, alvo de riso da própria criança, cuja percepção clama por iguarias, no mínimo, compatíveis com seu tempo e com sua inteligência. Carlos Drummond de Andrade já questionou:

O gênero Literatura
Infantil tem a meu ver
existência duvidosa.
Haverá música infantil?
Pintura infantil? A partir
de que ponto uma obra
literária deixa de constituir
alimento para o
espírito adulto? Qual o
bom livro para crianças
que não seja lido com
interesse pelo homem
feito? Qual o livro de
viagens e aventuras,
destinado a adultos, que
não possa ser dado a
crianças, desde que
vazado em linguagem
simples e isento de
matéria de escândalo?
(...).
ANDRADE, 1964

Jesualdo Sosa (SOSA, 1978) afirma que muito do que se escreve com rótulo "para crianças" é recusado por elas, por ser elementar e pobre. Sendo assim, é conveniente pensar que o leitor infantil é, sobretudo, um leitor crítico. E mais: a criança é espontânea e diz se o livro agradou ou não. O que não gosta, ela não digere. E se a escola obriga, vai aos trancos e barrancos para não perder nota, mas, como dizia Lobato, "fica vacinada contra a leitura para sempre".
Do ponto de vista estético, não existem diferenças entre a obra literária destinada a adultos e aquela escrita para crianças, isto é, um bom livro será lido tanto pela criança como pelo adulto. Há livros que não foram, inicialmente, escritos para as crianças, mas, caindo no seu agrado, logo foram adaptados, como As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e Robinson Crusoe, de Daniel Defoe.
Regina Zilberman esclarece que, na sociedade antiga, não havia infância, entendida como "nenhum espaço separado do mundo adulto". Logo, a literatura infantil só surgiria com a ascensão da burguesia, no século XVIII.
No Brasil, nossas primeiras criações literárias para crianças datam do início deste século. Até então, os livros eram importados. Ao importar livros, importou-se também a ideologia neles contida. Por isso, a abordagem moralista foi o primeiro fio condutor das produções literárias para a criança. Sendo uma literatura escrita por adultos, estes não resistiram a uma postura pedagógico-moralizante.
Infelizmente, as tendências didáticas e moralistas dos primeiros tempos ainda podem ser detectadas nos textos atuais, mas esbarram com um número cada vez mais significativo de obras cuja função lúdica está amalgamada a uma visão questionadora dos valores e comportamentos da sociedade contemporânea. (É importante lembrar que a única narrativa atrelada à "moral da história", explicitamente, é a fábula.)
Henriqueta Lisboa iniciou, nos anos 40, o processo de ruptura com essa tendência tradicional moralizante, surpreendendo o leitor na frase final de seu poema "Consciência" (veja abaixo).

Consciência
Hoje completei sete anos.
Mamãe disse que já tenho consciência.
Disse que se eu pregar mentira,
não for domingo à missa por preguiça,
ou bater no irmãozinho pequenino,
eu faço pecado.
Fazer pecado é feio
Não quero fazer pecado, juro
Mas se eu quiser, eu faço.
Lisboa

A literatura infantil é, antes de tudo, literatura, portadora de uma linguagem carregada de significados, permitindo releituras e oferecendo novas óticas para leitores vários. É certo que cada um lê de acordo com suas características sociais, valores, crenças e experiências acumuladas. Por isso, é impossível esperar uma leitura igual de todo mundo. O que se pode esperar é uma leitura coerente, mas igual, não.
Não se deve pretender também que todos gostem de um texto, porque ele nos fascinou, do mesmo modo que não somos forçados a apreciar uma história que nosso vizinho adorou. Daí a necessidade de apresentar ao aluno temas e autores variados, para que ele possa escolher aquele(s) que mais lhe agrada(m).
A responsabilidade do professor é muito grande. Cabe a ele selecionar textos adequados e interessantes. O gosto pela leitura é passado, pelo adulto, à criança. Se ele não o tem, como vai passá-lo? A sinceridade é básica. Não se elogia um texto da "boca pra fora". Soa falso e o aluno percebe.
A expressão "gosto pela leitura" deve ser preferida ao "hábito de leitura". Este lembra muito um ato corriqueiro, mecânico, automatizado. Gosto supõe sensibilidade e prazer. Pode acontecer que esse gosto se aninhe na criança - o que é muito bom e esperado - e no futuro, adolescente e adulto, passe a fazer da leitura um hábito. Aí já são "outros quinhentos"...
Não cabe apenas ao professor a criação desse gosto: os pais têm responsabilidade nessa tarefa; são eles as pessoas que, antes da idade escolar, devem proporcionar aos filhos a oportunidade de ouvir histórias, manusear livros, perceber a beleza das palavras e das imagens desse objeto mágico, que, ao invés de ser empurrado às crianças, deve ser exposto, segundo a opinião de Tatiana Belinky. Exposto à sensibilidade das mãos e do olhar...
Apesar de o livro infantil ser escasso nas bibliotecas, a produção editorial dedicada à criança é vastíssima, havendo uma grande luta pela abertura de espaços. Por isso, é preciso analisar com cuidado quais os textos realmente literários e quais os que encobrem, debaixo do manto da modernidade, o mesmo discurso autoritário, moralista e preconceituoso de anos atrás. Assim como o texto informativo caracteriza-se pela objetividade, o texto literário é portador de ambigüidades, de plurissignificação. Ele reconstrói o mundo através da reconstrução da linguagem, como pode ser sentido em:

Dias dos de sonhos rasantes,
noites de sonho arrasado.
Mas ele, ressabiado,
teimava em assobiar.
Dorremifava macio, no
galho ou na bacia, o desejo
de avoar. Um dia, o sabiá
dizia, um dia eu consigo
avoar.
CUNHA, 1993

Vale a pena relembrar que, muitas vezes, diante de um texto literário inédito, deparamo-nos com frases conhecidas e, até mesmo, facilmente identificáveis, como em:

O ponto de interrogação
deu um grito de independência
ou morte e saiu andando pela folha
WATANABE, 1992

Isso mostra que "o discurso emitido por cada um de nós, apesar de certos traços particulares, contém falas, concepções e posturas dos outros. Por trás de nossa voz estão não só as vozes de nossos contemporâneos, mas também a voz de uma humanidade de milênios, cujos ecos, de alguma forma, chegaram até nós", como afirma Nancy Maria Mendes.
A literatura infanto-juvenil muito tem se utilizado dessa relação entre textos ou entre texto e contexto - que se chama intertextualidade. Ela está presente em Fita verde no cabelo - nova velha história, de Guimarães Rosa (Ed. Nova Fronteira); Pio e Pínóquio e Alice no metrô, de Lino de Albergaria (Ed. Lê); A teia de Penélope Aranha, de Carlos Queiroz Telles (Ed. F.T.D.); As idéias do canário, de Edson Gabriel Garcia (Ed. Formato), para citar alguns. São releituras feitas com engenho e arte.
No teatro, cinema e televisão, também pode ser percebida essa relação intertextual. O grupo Galpão coloca Romeu e Julieta numa atmosfera cantante com mambembes de pernas-de-pau. A Terça Nobre da Rede Globo já mostrou O alienista, de Machado de Assis, Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins, e outros incontáveis sucessos da literatura brasileira. De modo geral, a comparação entre os textos é cercada de aplausos e críticas. De acordo com matéria publicada na Revista Escola & Vídeo (ALCURE, 1994), "há os que acham que não se deve profanar o valor artístico do texto literário. Outros defendem a utilização da imagem para recontar belas histórias e, finalmente, há quem defenda a divulgação do livro pela televisão, mesmo quando a fórmula adotada pelo autor do roteiro parece bem afastada da concepção original." Muda-se a substância, ainda que a história seja a mesma - complementa a autora.
Para o escritor e roteirista Alcione Araújo, toda adaptação é fruto de uma transubstanciação, ou seja, há uma mudança de natureza do meio escrito para o meio audiovisual.
O importante é colocar o leitor/espectador diante do texto. O sujeito-leitor interage com o texto, estabelece trocas com ele. A partir daí, ele terá condições de posicionar-se em tudo que diz respeito à leitura: personagens, diálogos, trilhas sonoras, cenários, etc., através da construção dos significados pela interação.
A hora e a vez da literatura na escola é o momento em que se acredita que ler não é apenas uma atividade escolar a mais, com fichas e provas cansativas e descontextualizadas, mas uma atividade vital que deve ser, desde as séries iniciais, cheia de significação.
Como na epígrafe de A hora e a vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa: "Sapo não pula por boniteza, mas porém por precisão", a LITERATURA INFANTIL, povoada de fadas, reis e princesas, toma a feição desse sapo. Que não pula por boniteza apenas, apesar da extrema graça. Mas pula pela necessidade de instaurar, no coração do leitor - seja ele qual for -, a paixão pelo LIVRO. Nessa hora, ele vira príncipe. E seu encantamento é para sempre...
* Neusa Sorrennti é autora de livros infantis, bacharel e licenciada em Letras pela PUC-MG e bacharel em Biblioteconomia pela UFMG

Referências bibliográficas

ABROMOVICH, Fanny. Literatura infantil; gostosuras e bobices. São Paulo, Scipione, 1989.
ALCURE, Lenina. Qualquer maneira de cantar vale a pena? Revista Escola e Vídeo, Rio de janeiro: Fundação Roberto Marinho, n.6, p.15-18, jan.1994.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Literatura infantil. In: Confissões de Minas. Literatura — Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar Editora, 1964.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil e juvenil; das origens indo-européias ao Brasil contemporâneo. 4.ed. São Paulo: Ática, 1991.
CUNHA, Léo. O sabiá e a girafa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
KHÉDE, Sônia Salomão (org.). Literatura infanto-juvenil; um gênero polêmico. 2.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
LISBOA, Henriqueta. O menino poeta. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.
MENDES, Nancy Maria. Intertextualidade: noções básicas. In: Teoria da literatura na escola.
PAULINO, Graça, WALTY, Ivete (orgs.). Teoria da literatura na escola. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1994.
ROSA, João Guimarães. A hora e vez de Augusto Matraga. In: Contos brasileiros. Antologias Escolares Ediouro.
SANDRONI, Laura. De Lobato a Bojunga; as reinações renovadas. Rio de Janeiro: Agir, 1987.
SOSA, Jesualdo. A literatura infantil. Trad. James Amada. São Paulo: Cultrix, Ed. Da universidade de São Paulo, 1978.
WATANABE, Lucy. Ponto final feliz. Belo Horizonte: Dimensão, 1992.