A BRINCADEIRA E A CULTURA INFANTIL
Tizuko Morchida Kishimoto
Se
desejamos formar seres criativos,
críticos e aptos para tomar decisões, um dos requisitos
é
o enriquecimento do cotidiano infantil com a inserção de
contos, lendas, brinquedos e brincadeiras.
Vygotski (1988) indica a relevância
de brinquedos e brincadeiras como indispensáveis para a
criação
da situação imaginária. Revela que o
imaginário
só se desenvolve quando se dispõe de experiências
que
se reorganizam. A riqueza dos contos, lendas e o acervo de brincadeiras
constituirão o banco de dados de imagens culturais utilizados
nas
situações interativas. Dispor de tais imagens é
fundamental
para instrumentalizar a criança para a construção
do conhecimento e sua socialização. Ao brincar a
criança
movimenta-se em busca de parceria e na exploração de
objetos;
comunica-se com seus pares; expressa-se através de
múltiplas
linguagens; descobre regras e toma decisões.
A falta de qualidade das instituições
infantis redunda na seleção inadequada de aspectos da
cultura
relacionados com o saber instituído da escola elementar: a
escrita
e os números, excluindo elementos caracterizadores da cultura do
país como o carnaval, rituais do Bumba meu boi, festa de
coroação
dos reis, capoeira, futebol, as lendas, contos e a multiplicidade de
brincadeiras
oferecidas pelo folclore infantil. Nota-se, também, a falta de
materiais
típicos da fauna e flora brasileiras, como folhas, galhos,
pedras,
conchas, frutos, flores, penas. A produção de objetos
não
reflete a riqueza do mundo cultural e natural. Mesmo o uso da sucata
industrial
fica empobrecido com a falta de tratamento que ofereça
identidade
cultural a tais objetos. O imaginário infantil não
reflete
a riqueza folclórica, com suas lendas da
vitória-régia,
jibóia, boto cor-de-rosa, que habitam regiões da
Amazônia
e Mato Grosso. Acumulados por povos indígenas, negros e brancos,
traços que marcam a pluralidade cultural brasileira, as lendas e
contos presentes no imaginário das crianças dos tempos
passados,
foram excluídos dos conteúdos escolares ocasionando a
separação
entre a escola e a cultura (Kishimoto, 1993a). A riqueza das lendas e
contos
retratadas por pintores como Portinari, manifestam-se nas brincadeiras
tradicionais como a mula-sem-cabeça representando o pegador nas
noites escuras de Brodoski, romancistas como Rego (1969), que em Menino
de Engenho, contam suas lembranças dos tempos do engenho de
açúcar,
em que se brincava de capabode, a brincadeira de faz-de-conta em que
só
brancos construíam engenhos de açúcar assumindo o
papel de proprietário, em que se simulava o “Antônio
Silvino”,
o cangaceiro do nordeste, empunhando armas e organizando
batalhões
(Kishimoto, 1993a). As imagens sociais dos tempos passados perdem-se,
guardados
em gavetas que não foram mais abertas em virtude do novo modo de
vida dos tempos atuais que impede a transmissão oral dentro de
espaços
públicos. Cabe à escola a tarefa de tornar
disponíveis
o acervo cultural dos contos, lendas, brincadeiras tradicionais que
dão
conteúdo à expressão imaginativa da
criança,
abrir o espaço para que a escola receba outros elementos da
cultura
que não a escolarizada para que beneficie e enriqueça o
repertório
imaginativo da criança. Concretizar pressupostos de Vygotski
(1988,
1987, 1982), de que a cultura forma a inteligência e que a
brincadeira
de papéis, favorece a criação de
situações
imaginárias e reorganiza experiências vividas é,
também,
o caminho apontado por Bruner (1996), que abre as portas da escola para
a entrada da cultura e condiciona o saber a um fazer. Aprendizado esse
que começa com brincadeiras em que se aprende a criar
significações,
a comunicar-se com outros, a tomar decisões, decodificar regras,
expressar a linguagem e socializar.
Pesquisas efetuadas em creches e
pré-escolas
demonstram que os materiais privilegiados pelas
instituições
infantis continuam sendo os gráficos e os educativos.
(Kishimoto,
1996c, 1996b, Canholato, 1990, Pinnaza, 1989), referendando mais uma
vez
valores relacionados às atividades didáticas,
predominando
o modelo escolar, marginalizando a expressão, criatividade e
iniciativa
da criança. A cultura brasileira, na sua forma pluricultural,
rica
em folclore, não habita os domínios escolares. É
essa
seletividade a que se refere Forkin (1996), ao apontar como a
educação
relaciona-se com aspectos da cultura. A inversão desse modelo
pode
efetuar-se por um processo político de introdução
dos elementos folclóricos no contexto da educação,
à semelhança do Japão, que nos anos 70, ao
perceber
o desaparecimento das brincadeiras tradicionais, fruto da intensa
industrialização
e urbanização do país, introduz medidas
políticas
visando recuperá-las, a partir da inserção de
brinquedos
e brincadeiras nos currículos infantis. (Kishimoto, 1995c,
1996a).
Diante de tal situação
destacam-se os trabalhos de centros de pesquisa e de estudos: o
Laboratório
de Brinquedos e Materiais Pedagógicos da Faculdade de
Educação
da Universidade de São Paulo, desde 1993, dispõe de um
banco
de dados sobre brincadeiras tradicionais brasileiras para subsidiar
profissionais
no trabalho pedagógico, (Kishimoto, 1993b); a
Fundação
Carlos Chaga, de São Paulo, realiza e divulga pesquisas sobre
creches
e Universidades como a de Ribeirão Preto, Santa Maria,
Curitiba,
entre outras, dispõem de projetos de capacitação
de
profissionais de creches e pré-escolas aproximando a cultura da
escola com a inclusão das brincadeiras infantis. Apesar de
marginalizadas,
a educação infantil dispõe de centros que batalham
pela expansão da educação infantil e melhoria da
qualidade
de formação de profissionais. Entretanto, dado as
dimensões
continentais do país, somente medidas políticas
poderão
socializar experiências restritas a centros de excelência
oferecendo
às crianças brasileiras o direito não só de
acesso à educação infantil como o de experimentar
o prazer de aprender a fazer por meio de brincadeiras.
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